A construção da feminilidade e o contexto histórico

 

architecture-bay-blonde-196667 (1)A Cultura produz discursos. E o ser humano, seja ele homem ou mulher, está imerso na Cultura. Quando nascemos, já existe um discurso que pré-existe ao nosso nascimento. Portanto, nascemos mergulhados num universo simbólico que nos situa, nos dá um lugar, de acordo com os valores vigentes de uma dada sociedade, suas crenças. Assim, todos os sujeitos estão inscritos de uma forma específica, num determinado momento histórico. E cada momento histórico vai definir, ao longo do tempo, uma maneira de ser HOMEM ou MULHER.

Nós nos tornamos homens ou mulheres ao longo do percurso de nossa constituição enquanto sujeitos. Assim, a construção da FEMINILIDADE tem a ver não só com as IDENTIFICAÇÕES relacionadas às figuras parentais como também ao contexto cultural.

Vamos examinar o campo onde as mulheres tentam se constituir como sujeitos, para além do desejo de um homem, ou para além do discurso cultural – para além do par maternidade/casamento. Porque vamos observar que “os tais lugares” determinados culturalmente (quase sempre pelo discurso masculino), teriam sempre estado a serviço de “algo mais” – ou seja, teriam sempre servido de sustentáculo a um determinado modo de produção, a uma determinada organização econômica.

Voltando às origens da sociedade burguesa, na segunda metade do século XIX, podemos perceber que havia toda uma produção discursiva e um campo imaginário sobre uma suposta “natureza feminina” eterna e universal. Essa “verdade” colocada definia a mulher. Ser mulher era aquilo, se não fosse assim… não era mulher. A mulher era objeto de um discurso muito consistente, muito bem elaborado, cheio de justificativas, e este discurso era incontestável. Mas aquela era a verdade do discurso de alguns homens e esta verdade sustentava o modo de produção capitalista, que tinha na família seu esteio. A função da mulher era ser esposa e mãe, a Rainha do Lar. Ela “dava força” ao marido, que vivia a grande aventura burguesa.

Mas acontece que as mulheres desejavam também outras coisas, elas também queriam dar uma dimensão heróica à própria vida, construindo o seu próprio destino. A Revolução Francesa (1789) pregara como ideais a Igualdade, Fraternidade e Liberdade. E a burguesia agora dava a cada um a liberdade de criar seu próprio destino, conforme fosse o seu desejo. Havia então nesta época, uma contradição muito grande entre os ideais da Modernidade e o lugar destinado às mulheres pela cultura. Aliás, toda vez que ocorrem mudanças sociais, culturais, há que se produzir novos discursos, novos saberes.

E era isto que estava se colocando para as mulheres naquela época. Mas como as coisas ainda não estavam bem claras, havia um certo mal-estar, um conflito. Algumas poucas mulheres tentavam expandir seu espaço de participação na sociedade, dando vazão aos seus desejos. Escreviam, liam, estudavam, muitas vezes escondidas, publicavam sob pseudônimo masculino. Outras não, não conseguindo expressar o seu mal-estar num mundo mutante, acabavam produzindo “sintomas”, elas adoeciam.

É nesse momento que surge a Psicanálise, em Viena, no final do século XIX. Sigmund Freud, um jovem médico, começou o escutar as suas “histéricas” o que lhe possibilitou descobrir a existência do inconsciente. Os sintomas neuróticos nada mais eram do que “formações de compromisso” entre o retorno do recalcado (o desejo) e as forças da repressão. Tinha havido nesta época um afrouxamento do recalque social. Madame Bovary, de Gustave Flaubert, talvez encarnasse esta mulher que queria mudar de vida, mas que não se deu bem, pois não foi capaz de simbolizar o seu desejo. Fêz inúmeras atuações no real…

Já no século XX há, a meu ver, dois momentos super importantes. O pós-guerra a partir de 1945; e o Feminismo, que já vinha desde a virada do século XIX para o XX com as sufragistas, mas que teve o seu “boom” nos anos 60. A Segunda Grande Guerra havia lançado um enorme contingente de mulheres no mercado de trabalho este fato mudou a fisionomia do Europa e do mundo.

Com relação aos direitos civis e às conquistas sociais, a mulher já vinha conseguindo muitas coisas, mas nos anos 1960 houve uma explosão que trouxe uma grande revolução inclusive dos costumes. O advento da pílula anticoncepcional trouxe “liberdade sexual” para a mulher, que ao entrar no mercado de trabalho foi conquistando independência financeira e se tornou responsável pela própria vida. Simone de Beauvoir publica “O Segundo Sexo”… um marco na discussão das questões relacionadas à feminilidade.

A mulher vai deixando de ser “cúmplice” do discurso machista para começar a escrever sua própria história. Conquista o espaço público, do qual se considerava privada, emblema fálico que antes só pertencia aos homens.

Mas, o quê significa ser mulher hoje?

Nestes últimos 50 anos muitas mudanças ocorreram. Globalização, profundas transformações na economia e na organização social. Avanços tecnológicos que há apenas algumas décadas pareciam ficção científica, hoje fazem parte do nosso cotidiano.
A intensificação do “discurso capitalista” da cultura contemporânea gerou imperativos para homens e mulheres: de consumo, da máxima eficiência, produtividade e lucratividade.

Convivemos também com a força poderosa da mídia que veicula “verdades” incontestáveis sobre a mulher, “idealizações” do que é ser mulher hoje: a profissional 100%, a ditadura do corpo perfeito, relacionamento perfeito, filhos perfeitos. O imaginário da completude.

Nada falta a esta mulher idealizada, a verdadeira encarnação da Mulher Maravilha.

Vivemos na era da imagem, que é vendida e consumida – a sociedade do espetáculo. Novos imperativos vigoram, só que agora uma versão atualizada do antigo modelo do século XIX.

O esforço é enorme para sustentar a imagem! E por quê? Porque a imagem não suporta máculas, um pontinho fora do lugar. Ela tem que ser sustentada a qualquer custo e aí entramos no campo dos impossíveis.

Não somos ingênuos a ponto de não percebermos que por trás de tudo isto existe um mercado que dita as regras. Uma ideologia que se cria e que está a serviço do consumo dando embasamento ao MODO DE PRODUZIR CAPITALISTA. E indivíduos super-exigidos, exaustos, que acabam adoecendo. Nunca se ouviu falar tanto em depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, anorexia, bulimia, obesidade, droga-dicção e alcoolismo, como ultimamente.

O que ocorre é que há um transbordamento, um COLOCAR EM ATO ou no próprio corpo, algo que não pode se expressar em palavras, algo que não encontra caminhos para a simbolização. É um outro tipo de mal-estar.

A meu ver, a mulher conquistou muitas coisas relacionadas ao TER, mas ainda restam questões relacionadas ao SER. Encontrou uma solução imaginária, pois ainda muitas vezes ela se pergunta pela sua identidade.

Ela tenta articular um discurso próprio. Na verdade, em relação à mulher há um saber que nunca pára de se construir.

Bibliografia:

 Kehl, Maria Rita, “Deslocamentos do Feminino”, Imago, Rio de Janeiro, 1998

 André, Serge, “O que quer uma mulher?” Jorge Zahar, Campo Freudiano no Brasil, Rio de Janeiro, 1986

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